A reprodução humana assistida pelas técnicas da inseminação artificial e da fertilização in vitro foi acolhida no art. 1597 CC. Destarte, sem lei regulamentadora, a matéria de alta complexidade é permeada pelas lacunas, Lei de Biossegurança e por Resoluções do Conselho Federal de Medicina. A priori é necessário destacar onde o dispositivo foi recebido, no livro das Famílias, capítulo da Filiação, o que nos conduz à conclusão de que Miguel Reale Jr. descartou a coisificação do ente embrionário alçado à condição de filho.
Dentre os problemas da falta de regulamentação dos direitos reprodutivos no Brasil, temos que embriões são confeccionados em laboratórios sem limite numérico e sem que saibamos o destino dos excedentários congelados, que podem ser destinados para doação, pesquisa em suas células-tronco que importam em sua destruição ou ao descarte, praxes de profundas discussões éticas (art. 5 Lei Biossegurança e Código de Ética Médica).
A técnica da inseminação artificial consiste na manobra médica para introdução de gametas masculinos (espermatozoides) em grandes quantidades no corpo da mulher, antes estimulada por hormônios, e pela via transvaginal ou abdominal, com resultado espontâneo ou não de gravidez. A
técnica da fertilização in vitro (FIV) é procedimento pela via extracorpórea realizada em laboratório, pela junção de óvulos e espermatozoides num líquido e ambiente apropriados. Do encontro de óvulos (oócitos) e espermatozoides inicia-se a concepção que se concretizará até 72 horas
após o encontro dos gametas, e depois de dezesseis divisões mitóticas celulares. Durante o procedimento, as características do novo ser são desenhadas: DNA, predisposição à doenças hereditárias, síndromes, características físicas, talentos, má formações, tudo está demarcado de
modo imutável, indivisível e único, resultando no ovo, zigoto ou pré-embrião segundo a doutrina médica e protocolos internacionais da área. Para o artigo 1597 CC – justificável pela falta de técnica do legislador com o Biodireito – este ser concebido em laboratório é denominado embrião.
Segundo a Resolução 2168/2017 do Conselho Federal de Medicina, só podem ser implantados in natura no útero da mulher até 4 embriões, a depender da idade da paciente, sendo que os demais embriões são chamados de excedentários ou supranuméricos que serão congelados sem prazo. O Código deixa claro que os embriões excedentários são filhos (art.1597), e a Constituição garante que todos os filhos são iguais perante a lei, sendo proibidas discriminações (art. 227, par. 6o.), portanto, considerando que o destino dos embriões criopreservados é incerto – podem ser
implantados futuramente, doados para casais inférteis, utilizados para pesquisas científicas quando “inservíveis” ou descartados – resta-nos analisar quem são os pais responsáveis pelo ser embrionário e seu destino.
Na reprodução homóloga são utilizados material genético da esposa e do marido (o artigo 1597 CC traz a presunção de paternidade na constância do matrimônio), formando-se o parentesco consanguíneo a qualquer tempo indefinidamente e por todo período de congelamento, artigo 1597, IV, CC. Qual o tempo de viabilidade de congelamento de um embrião?
Desenvolvi a pesquisa na Faculdade de Medicina da USF, em Bragança Paulista, e o resultado foi inconclusivo porque não é possível afiançar por quanto tempo um embrião será viável em congelamento, cada ser é único, existindo casos díspares na Europa. Certo é que enquanto existir embrião viável congelado há presunção pater is est do marido e da esposa.
O congelamento do embrião e o elo parental indefinido no tempo delineia reflexos jurídicos incomuns: a) filhos habitando geladeiras que podem nascer a todo momento enquanto viáveis; b) filhos que podem ser doados para casais desconhecidos e com as mesmas características genéticas dos pais biológicos, sem nenhum elo com estes; c) filhos usados cruelmente em
pesquisas científicas que destroem suas células-tronco para a busca de terapias e curas de doenças; d) filhos descartados após o prazo de três anos com o consentimento de seus pais; e) e ainda, embriões abandonados pelos pais e que serão descartados como prevê a resolução mencionada. Descarte é desprezo, encerrar a vida, tecnicamente não existe a figura típica do aborto porque não há gestante nesta fase.
Sob outro prima, o congelamento do embrião possibilita que seu pai ou mãe
biológicos estejam mortos no momento em que o embrião for implantado num
útero para desenvolvimento e nascimento.
Ao contrário do Código Civil Argentino que proibiu o procedimento, o brasileiro autorizou a reprodução homóloga póstuma após o falecimento do marido, art. 1597, III, de modo que o filho nascerá sem o pai biológico e gestado pela mãe viúva. Todavia, por amor à isonomia, entendemos que se a mãe for pré-morta, o pai viúvo poderá com auxílio de barriga de substituição implantar seu filho noutra mulher, de modo que é plausível cogitar uma maternidade socioafetiva da doadora de útero e a procriação após falecimento da esposa.
Outro procedimento autorizado é a reprodução assistida heteróloga, art. 1597, V, CC que utiliza material genético de doadores anônimos protegidos por contrato de confidencialidade assumido com a clínica. Para concepção, o médico escolherá por sua conta e risco, doador ou doadores compatíveis com os fenótipos do casal que contrata o procedimento, preservando tanto a
identidade dos doadores, como resguardando-os de qualquer vínculo de parentesco com o filho. O parentesco formado é por outra origem via afetividade com os pais que realizam a fertilização, desconhecendo o filho sua ascendência biológica, ancestral e histórica. Muitas vezes, para viabilizar o processo em casais de mesmo sexo ou que não tenham condições de gestar, utiliza-se de quinta pessoa parente de um deles até a linha colateral de quarto grau, chamada mãe de substituição ou doadora de útero (é inadequada a expressão barriga de aluguel). Como resultado, o filho possui pais afetivos, mas não conhece seus pais biológicos, e poderá desenvolver relação de afeto com a doadora de útero para a qual sugerimos a multiparentalidade em trabalho publicado na Revista de Direito Constitucional e Internacional RDCI 106/63.
O Direito não é estático, clama pela transdisciplinaridade e carece das respostas do Biodireito e Bioética para prescrever reflexos jurídicos das possíveis relações parentais decorrentes da reprodução assistida.
Na prática, pais movidos pelo sonho da filiação desconhecem seus papéis frente aos filhos congelados. Em protocolos internacionais de direitos humanos é considerada a natureza do embrião concebido dotado de DNA, preservando sua vida desde o instante da concepção (art. 2 CC). Se os pais são responsáveis pelos filhos gerados devem agir com maior cautela no que
tange ao número de embriões formados em laboratório, afinal, esta não é uma decisão financeira.
Em conclusão, deixamos a reflexão aos pais dos embriões congelados: é plausível descartar os próprios filhos, abandoná-los nas geladeiras ou destiná-los para a pesquisa científica em suas células tronco?
*Artigo escrito e publicado em 2019
SAMANTHA KHOURY CREPALDI DUFNER
Mestre em Direitos Humanos Fundamentais pela UNIFIEO; Especialista em Direito Notarial e Registral pela EPD; Advogada e Consultora; Coordenadora e Professora na Pós-graduação em Direito das Famílias e Sucessões do Proordem Goiânia. Professora de Direito Civil em cursos de Pós-graduação e preparatórios para OAB. Pesquisadora do grupos Biòs da PUC-SP. Autora do livro Direito de Herança do Embrião e de artigos jurídicos.
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