A teoria da ação coletiva de Mancur Olson (1999) aduz que nem sempre o interesse de um indivíduo é suficiente para que todos atuem para a obtenção de um benefício que seria destinado ao grupo.
Alguns indivíduos entendem que o benefício almejado pode ser alcançado independentemente de sua manifestação individual, especialmente se o custo do benefício perseguido for menor do que o custo envolvido para que este seja alcançado.
Para Olson, grandes grupos têm maior dificuldade para alcançar resultados, seja pelo pouco impacto que a ação de um único indivíduo pode ter sobre o todo, seja pela própria diluição deste elemento no todo.
Em outras palavras, alguns não fazem nada, e outros não acreditam que sua ação individual não seja uma mera perda de tempo.
Este fenômeno ocorreu nas relações de trabalho no Brasil do Século XXI. Soma-se a diluição do sentido coletivo, a apatia, o alto grau de desinteresse sobre política, e mesmo a divulgação de conceitos confusos e rasos absorvidos a partir das redes sociais pelos trabalhadores.
Sabemos que Zygmunt Bauman (2001) tratou em “Modernidade Liquida”, bem como nas demais obras permeadas pelo universo da diluição da concretude das relações humanas, que a relação de trabalho se transformou em relações fugazes, diluídas de pertencimento em desfavor do ambiente anterior nos quais as pessoas podiam projetar uma relação mais duradoura no ambiente de trabalho.
Especialmente nos anos 80 do Século XX, até o presente momento, as relações de trabalho perderam a característica do trabalho clássico, aquele realizado em ambiente fabril, coletivo, com ampla participação de sindicatos na representação de trabalhadores, para relações forjadas pelo neoliberalismo como “modernas”, nas quais os trabalhadores foram denominados como “colaboradores”, “empreendedores”, “donos do próprio negócio” etc. É o que Antunes (2018) denominou como “uma mescla de burguês-de-si-próprio e proletário-de-si-mesmo”.
Assim, perseguindo o inalcançável modelo chinês de relação de trabalho, com o advento da desindustrialização e proletarização de serviços, nos países subdesenvolvidos, surgiram as figuras dos trabalhadores “uberizados”, “pejotizados”, “intermitentes”, “flexíveis”, “zerados”, ainda nas palavras de Antunes.
No Brasil, com a desindustrialização combinada com a crise de exportação de commodities a partir de 2013, e consequente baixa de preços, houve também o aumento da massa de desempregados e desocupados, que segundo o PNAD alcançou níveis próximos a 14 milhões de desempregados recentemente.
Essa imensidão de desempregados, em particular filhos de operários em centros urbanos, abriga-se exatamente em trabalhos de características individualizadas e autônomos.
Desta forma, o serviço de transportes de pessoas e alimentos com a intermediação de aplicativos, dentre outras atividades, passou a ser quase que único abrigo para estes trabalhadores.
É exatamente neste tipo de relação de trabalho, fora do ambiente coletivo, extremamente individualizado, sem qualquer garantia social, que avançou a precarização da relação humana de trabalho.
Nesse sentido, o “cada um por si”, e o trabalho no qual o trabalhador labora com o próprio meio de produção (carro, bicicleta, motocicleta, peruas etc.) serve apenas para alcançar pouca verba alimentar para o trabalhador e família.
Aqui temos o trabalhador individualmente arrastado pela gravidade do massivo buraco negro da atual estrutura do capitalismo presente nos países periféricos, como o Brasil.
Desta forma, tornou-se até mesmo temerário legislar-se sobre a condição destes trabalhadores, subordinados digitalmente aos algoritmos, mesmo que seja para conceder-lhes a condição de “workers”, na zona cinzenta que situasse entre autônomos e os celetistas com vínculo de emprego reconhecido.
Assim, a proletarização dos serviços já se tornou parte integrante da lógica do custo produção global com reflexos internos no Brasil.
Não é de se estranhar que nossas instituições democráticas venham legitimando a lógica global deste tipo de trabalho, negando-lhes reconhecimento de relação de emprego, pondo e dispondo do fator de produção de horas de trabalho em forma de banco de horas quando milagrosamente empregados, negando-lhes assistencial médica e social, como exemplos.
O grande perigo que reside nesta situação, e que pode afetar a democracia, é que grande da massa proletária urbana pode entender que não conseguirá vencer seguindo as regras do utópico jogo democrático.
Em outras palavras, poderá ser entendido, em algum momento, que simplesmente essa vida não vale a pena. Não se projeta crescimento, estudo, moradia, vida afetiva, porque se corre todo o tempo atrás da hora/trabalho para sobreviver.
A diluição do sentido do coletivo na busca de uma perspectiva concreta de futuro pode ter um custo maior do que o sentido do coletivo oriundo do totalitarismo/fascismo/
O solapamento do escape sindical, mesmo com toda sua deficiência cartorial, contribuiu para que estes trabalhadores simplesmente ficassem à mingua de qualquer representatividade. Observe-se que nada foi proposto para substituir a antiga estrutura sindical, que permaneceu capenga e vulnerável à força do capital, mesmo que seja apenas para corrompe-la.
Paradoxalmente, com a reforma trabalhista, foi defendida pelos agentes políticos a ideia de que o negociado teria prevalência sobre o legislado, mas não existirá nenhum modelo de negociação factível sem que exista uma representação coletiva adequada.
Observamos em Humberto Eco (2018), ao abordar o fenômeno do fascismo que este também advém de frustração social ou individual. Ainda explica que uma das características do fascismo italiano é o “apelo às classes médias frustradas, desvalorizadas por alguma crise econômica ou humilhação política (…). ” E mais, para aqueles que se enxergam privados de qualquer identidade social: (…) o privilégio mais comum de todos: “ter nascido em um mesmo país”.
Aparece aí a figura fascista do nacionalismo exacerbado e odiento, e altamente manipulável.
Nos parece claro, em que pese opiniões em contrário, que enxergam um cenário de novas possibilidades positivas de desenvolvimento social pós covid-19, que os alicerces para desenvolvimento não têm potencial de alavancar crescimento econômico e social sustentável.
Nossa afirmação está fundamentada no cenário que acima explicitamos antes da crise do covid-19, que já era de extrema diluição do sentido de coletividade e de condições sociais e econômicas da população brasileira.
Desde meados do governo Fernando Henrique Cardoso, até a presente data, praticamente todas as ações das instituições da República têm sido realizadas no sentido de esgarçamento da legislação protetiva de trabalho e social, com exceção da implementação de assistência social do Bolsa-Família, mas que não se trata de mecanismo de emancipação da população.
Entendemos que uma política essencialmente de mercado desmantelou o arremedo de sonho do estado de bem-estar social, porém se socorre em todas as crises do estado que quer destruir.
Há uma estrutura de ódio político e social que se retroalimenta fortemente deste mecanismo de precarização. A massa proletária tende a agir para o lado que melhor lhe dê abrigo, mesmo que apenas retórico ou emocional.
Essa forma de pensar o desenvolvimento do trabalho humano apenas como mero fator de produção é exatamente este mecanismo o qual nos referimos, que uma vez acionado por algo inimaginável, é também instrumento para enfraquecimento do estado democrático liberal.
Este quadro já se apresenta em alguns exemplos como presente, em razão da existência de quadrilhas transnacionais e milícias, também infiltradas no ambiente político e social.
Não se estranhe o quase completo desinteresse dos jovens periféricos pela vida durante a pandemia, e a presença destes em aglomerações e festas. Isto é apenas mais uma face do total desencontro entre perspectivas de vida exitosa e realidade que se apresenta nas últimas décadas para estas pessoas.
Aguarda-se, apenas, uma redenção que promova os direitos fundamentais ao trabalho digno, saúde, alimentação, educação, dentre outros, pois estamos encarando algo monstruoso que será incontrolável, e a pandemia apenas agravou o quadro.
Cássio Faeddo. Advogado. Mestre em Direito. MBA em Relações Internacionais. FGV/SP.
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