A seguridade social brasileira é um sistema engendrado pelo constituinte, cuja estrutura se acha delineada no Título VIII, Capítulo II, da Constituição de 1988.
O sistema compreende três áreas: saúde, previdência social e assistência social. Ademais, foi prevista a organização e o financiamento do sistema.
O constituinte cogitou de que cada um desses segmentos deveria ser estruturado com sua própria ordem normativa.
Melhor seria, para efeitos de manuseio desse conjunto de regras, que fosse elaborado um código completo com as leis relativas à seguridade.
No entanto, o legislador preferiu editar leis distintas para cada área.
Deste modo, foi editada primeiro a lei da saúde – Lei nº 8.080, de 1990. Depois, foi expedida a Lei de Previdência – Lei nº 8.213, de 1991. E, finalmente, acabou vindo a lume a Lei de Assistência Social, de número 8.743, de 1993.
Como todas essas prestações dependem de recursos financeiros de elevado montante, outra lei cuidou do assunto, além de abordar a questão de organização desse sistema como um todo.
Refletirei, aqui, sobre a Lei nº 8.212, de julho de 1991, cuja promulgação completou 30 anos recentemente.
A Ementa dessa Lei diz o seguinte: “Dispõe sobre a organização da Seguridade Social, institui o Plano de Custeio…”.
Ementa é uma espécie de resumo a respeito do que a lei irá disciplinar.
E esse resumo já revela que o legislador de então não dispunha de preparo técnico para cuidar do assunto. Os técnicos são os estudiosos, aqueles que procuram entender o que o Direito quer dizer. Em geral, o legislador não é um técnico, porque desconhecia o que significa Plano de Custeio.
Por essa razão, a lei trata de diversos temas, mas em nenhum momento configura o Plano de Custeio.
O que justifica essa omissão?
O fato de que, naquele momento, o legislador não dispor de elementos concretos capazes de delinear um verdadeiro plano de custeio.
O que fez o legislador, pura e simplesmente, foi arrolar as distintas fontes de custeio então existentes. Vale dizer, mencionou as normas que criavam as fontes de custeio da seguridade social e, até mesmo, alterou algumas dessas leis.
Para criar o plano de custeio o legislador deveria dispor de dados técnicos que apontassem previsões demográficas, isto é, elementos sobre a evolução da sobrevida média dos brasileiros; sobre a composição familiar e, enfim, sobre outros elementos que pudessem aferir por quanto tempo alguém ficará a receber os benefícios e sobre qual a probabilidade de ingresso de novos contribuintes no mercado de trabalho.
Ocorre que alguém deveria buscar esses elementos nos bancos de dados oficiais ou deveria ordenar que fossem produzidos tais elementos.
E esse ponto merece particular atenção.
O artigo 6º da Lei nº 8.212, de 1991, havia criado o Conselho Nacional de Seguridade Social. Esse órgão, se nos permitirmos fazer uma analogia, era a verdadeira cabeça pensante do sistema de seguridade social.
Ocorre que, em 1999, a Medida Provisória nº 1799-5 atentou contra a estrutura da seguridade social, ao revogar o artigo 6º da citada Lei nº 8.212, de 1991, e suprimir o Conselho Nacional de Seguridade Social.
E cabia precisamente a esse Conselho elaborar o plano de custeio a partir dos dados que lhe fossem fornecidos pelas instâncias técnicas do Estado brasileiro.
Não há como alguém não ficar perplexo ao perceber que esse fato, da mais alta gravidade, tenha ocorrido há tantos anos e, desde então, não ter sido sanado em seus efeitos danosos para todo o sistema.
Como se disse acima, o sistema foi concebido com uma cabeça e essa cabeça, figurativamente, consistia no Conselho Nacional de Seguridade Social, órgão apto a preparar a proposta de orçamento, a organização e o plano de custeio.
A proposta de orçamento, com a previsão das receitas e das despesas das áreas da saúde, da previdência social e da assistência social, seria objeto de deliberação pelo Conselho Nacional de Seguridade Social.
A revogação do artigo 6º arrancou a cabeça do sistema que, desde então, opera como um monstro sem cabeça, corpo que anda sem a devida articulação.
A falta de articulação entre as três áreas – que dependem de um único orçamento – se mostra evidente até mesmo em assuntos que poderiam ser resolvidos com relativa facilidade.
É só pensar na inexistência do cadastro único da seguridade social.
Foram criados diversos cadastros que não se articulam; que não comunicam aos demais dados de que dispõe.
Há o cadastro da previdência, que é o mais antigo de todos. Todos os que são, ou que algum dia foram, segurados estão registrados no assim chamado Cadastro Nacional de Informações Sociais (CNIS).
Aliás, conviria que o leitor verificasse, quanto antes, se seus dados estão corretos e completos e, se não for assim, cuidar para providenciar os devidos acréscimos e correções. Não vá se lembrar disso somente no momento da aposentadoria!
E, então, ao invés de se caprichar na elaboração desse cadastro geral, é criado o cadastro do Sistema Único de Saúde (SUS).
Todos devem ter verificado que, no momento da vacinação recente, em razão da pandemia, muitos cadastramentos foram realizados às pressas.
Essa pressa revela que um dos dados para o plano de custeio não estava disponível em lugar nenhum.
Finalmente, foi criado o terceiro cadastro, o cadastro da assistência social, o CADSUAS, que deveria conter os dados relativos ao atendimento de natureza assistencial às populações mais carentes.
Ocorre que, sem a arrumação em cadastro único não haverá plano de custeio, porque faltarão elementos dispersos da população que tanto podem estar em algum dos demais cadastros existentes como o que também pode ser demonstrado, não figurarem em lugar nenhum.
Veja-se o que aconteceu quando o Congresso Nacional criou o auxílio emergencial.
Surgiram, como potenciais beneficiários dessa medida de urgência, mais de sessenta e cinco milhões de pessoas.
Será que todos eles passaram a integrar o CADSUAS?
Se isso tivesse acontecido, e receio que não aconteceu, estaria à disposição do Estado e da sociedade o primeiro esboço da miserabilidade do Brasil, onde há milhões de pessoas que não tem voz, nem vez, nem lugar.
Não é de se estranhar – embora seja repugnante e grave – que milhares de espertalhões tenham recebido (sem querer, é claro) o auxílio emergencial, mesmo sendo titulares de cargos públicos.
Que se perceba a gravidade da omissão consistente na inexistência de um cadastro único e do órgão – o Conselho Nacional de Seguridade Social – que, composto por representantes dos trabalhadores, dos empresários, dos aposentados e do próprio Estado, como ordena a Constituição, que seria incumbido de gerenciar esses dados e de produzir o plano de custeio.
Não é admissível que se prossiga com essa cabal inconstitucionalidade por omissão, representada pela ausência de lei que discipline aquilo que a Constituição exige seja estabelecido normativamente.
Esperemos que, com a recriação do Ministério do Trabalho e Previdência, os responsáveis pela definição das políticas sociais coloquem como pauta prioritária a da restauração imediata do Conselho Nacional de Seguridade Social, e que esse órgão ponha mãos à obra para edificar o cadastro unificado do sistema, elemento sem o qual não será possível aferir os dados elementares para a elaboração do plano de custeio.
Sem plano de custeio ninguém saberá com quantos e com quais recursos se pode contar a título de ingressos financeiros do sistema e, mais importante, quanto faltará para equilibrar financeiramente o sistema, num horizonte temporal de vinte anos. Sem plano de custeio não se saberá quanto sairá, sob as modalidades de saúde, de previdência e de assistência social.
Será o voo cego de uma estrutura sem cabeça.
Nada mais distinto da ideia de seguridade social.
Wagner Balera é professor titular de Direito Previdenciário e de Direitos Humanos na Faculdade de Direito da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), livre-docente em Direitos Humanos, doutor em Direito das Relações Sociais, autor de mais de 30 livros na área de Direito Previdenciário e de mais de 20 livros da área de Direitos Humanos e sócio fundador e titular do escritório Balera, Berbel & Mitne Advogados.
Comentarios
0 comentarios