Não restam dúvidas de que as alterações trazidas pela lei 14.112/20 que alteraram a lei 11.101/05 (LRF) foram mais um avanço do legislador na intenção de privilegiar os princípios da função social e preservação da empresa previstos, inclusive, na Constituição Federal. Tivemos avanços no que tange a flexibilização do plano de recuperação judicial, na efetividade da fiscalização do recuperando pelo administrador judicial, a consagração de algumas jurisprudências como a dos bens essências para continuidade da empresa e a apresentação de certidões tributárias e até mesmo uma condicional para a empresa conseguir crédito.
Ocorre que esta condicional ainda que válida é atinge apenas grandes empresas e não satisfaz a grande maioria das empresas do Brasil e que geram mais empregos que são médias e pequenas empresas. Para aqueles que não estão familiarizados com a matéria um breve resumo sobre a importância da recuperação judicial e seus princípios se faz necessário.
Todas as grandes economias mundiais estão fundadas na atividade privada das empresas e no liberalismo econômico. Partindo desta premissa fica fácil compreender que um problema neste sistema (como é o caso da pandemia), pode comprometer duramente a economia de todo o país gerando desemprego, queda na arrecadação e impostos o que afeta os serviços públicos, empobrecimento, endividamento entre outros. Para se ter uma ideia, na principal economia do mundo (EUA) um dos principais índices econômicos é o do desemprego, se o desemprego está em alta o governo age rapidamente para ajudar a atividade privada em sua recuperação.
Diante deste cenário é que a doutrina internacional desenvolveu ao longo dos anos as teorias da função social da empresa e da preservação da empresa. A teoria da função social é mais abrangente e não só abraça as empresas em crise como toda a atividade empresarial privada ao disciplinar que a empresa tem uma função social, qual seja: gerar empregos, riqueza, desenvolvimento, impostos, crescimento econômico, programas assistenciais entre outros.
Portanto, se a empresa exerce a principal função dentro de uma sociedade moderna a sua preservação é crucial, estamos passando por isto em tempo real com o fechamento de várias empresas por conta da pandemia gerando reflexos gravíssimos para toda a atividade econômica. É a este encontro que a Lei de Recuperação Judicial e Falências vem, ao de preservar a atividade econômica.
Temos que parar com a cultura de que todo empresário/empresa que passa por dificuldades age de má fé ou que o auxilio do governo ao desenvolvimento de empresas nacionais é vantagem ilícita. Todas as nações desenvolvidas do mundo injetaram dinheiro em empresas hoje multinacionais, como Samsung, Fiat, VW, General Motors, Ford entre outras. Por que? Porque ajudar a atividade econômica deve ser o objetivo principal dos governos pois é ela que devolve em impostos e desenvolvimento a ajuda recebida. Temos que desburocratizar e criminalizar o problema e punir os abusos, ou seja, não é a ajuda governamental que é ilícita ou imoral e sim como age quem a recebe, este deve ser punido com o rigor da lei.
A Lei 11.101/05 tem justamente como finalidade dividir com a sociedade este esforço do recuperando para superar a crise financeira e econômica instalada. Como? Com deságios e parcelamento dos débitos. E isto basta? Não. É senso comum na comunidade jurídica e econômica que uma empresa em crise precisa de um insumo básico: dinheiro/crédito. E sobre isto a lei e nem mesmo sua recente alteração não interviram mantendo o arcabouço de normas já consolidadas que dificultam o crédito e as empresas em dificuldade continuam sem acesso a dinheiro de primeira linha com juros mais baixos.
Importante aqui explicar um pouco sobre como é feita a concessão de um crédito. Os bancos, incluindo os públicos, precisam se certificar de que o crédito concedido vai retornar para a instituição, ou seja, não pode sair emprestando para qualquer um. Isto decorre de acordos internacionais (chamados acordos da Basileia) que visam a proteção do sistema financeiro mundial, porque um colapso neste sistema teria impactos desastrosos para a economia global, como visto na crise de 2008 dos EUA onde por lá o governo injetou dinheiro nas instituições financeiras para não haver uma quebradeira geral. Nos EUA as regras até então para o crédito (especialmente imobiliário) eram menos severas que no Brasil.
Com esta finalidade foram criadas diretrizes para que os governos locais e as instituições financeiras, observando os acordos da Basileia, definissem critérios para a concessão do crédito, sendo o principal deles a analise completa de quem requer o crédito. Uma classificação do risco do crédito foi proposta e fica a critério das instituições emprestarem o não dinheiro. Se o risco for maior, mas a instituição precisa ter reservas para cobrir eventual inadimplência, no Brasil é o deposito compulsório junto ao banco central.
Neste sentido pessoas jurídicas ou físicas com históricos ruins têm sua classificação no nível mais baixo, o que dificulta a concessão do crédito. As instituições financeiras, principalmente no Brasil porque a eles é mais atrativa a divida pública, preferem emprestar apenas para quem tem rating que possibilite ao banco não fazer o depósito compulsório, já que seu insumo é o capital e no Banco Central tem menor rendimento do que no mercado qualificado.
Assim as empresas em recuperação ficam sem a principal ferramenta para superação da crise, o crédito. Ocorre que ao analisar as diretrizes para proteção do crédito parece evidente que uma empresa em recuperação tem seus números e seu histórico muito mais consolidados do que quem se apresenta como potencial adquirente do crédito (temos um exemplo clássico no Brasil o caso do Banco Panamericano que inclusive envolveu uma multinacional de auditoria). Veja que na RJ além do poder judiciário, o administrador judicial e os credores (inclusive as instituições financeiras) estão a todo tempo fiscalizando o devedor com apresentação de relatórios mensais, visitas mensais aos recuperando e pareceres sobre a situação fática da empresa. Existe mais controle e confiabilidade nos números do que este? Não.
Evidente que para que o crédito fosse concedido o que se propõe é a aprovação do plano. Ora, se o plano foi aprovado e há viabilidade e condições para a empresa se recuperar, ela será fiscalizada e auditada por mais 24 meses, por que não conceder o crédito? Existe uma interpretação equivocada da resolução 2.682/99 do Conselho Monetário Nacional de que mesmo nas negociações de dívida o rating deve manter-se no nível mais baixo até a quitação, o que inviabiliza para as instituições financeiras conforme dito.
Em seu artigo 8º a resolução deixa claro que um fato relevante ou alteração substancial nas condições do adquirente do crédito pode ser considerado hábil para reclassificação do crédito, o que diminuiria a necessidade do depósito compulsório e deixaria o recuperando mais atrativo para este mercado. Isto porque a recuperação judicial pode ser justamente este fato novo e relevante já que o Estado através do poder judiciário entendeu que esta empresa realiza na sociedade sua função social e precisa ser preservada. Ademais, sob a batuta do Estado esta empresa será mais fiscalizada e seus números serão mais cristalinos do que as empresas que não estão nesta condição.
Uma mudança de visão em relação a concessão do crédito para uma empresa em recuperação judicial com plano aprovado significaria um grande ajuste do mercado, já que os fornecedores também seguem os critérios de classificação. Em momentos como o que vivemos este pequeno esforço do legislador poderia significar a mantença de vários empregos e empresas pelo Brasil.
A mudança introduzida no final do ano passado a lei de recuperação judicial foi positiva e, inclusive, timidamente tratou da concessão do crédito em seu novo capítulo denominado: Do financiamento do devedor e do grupo de devedores durante a recuperação judicial, artigos 69-A ao 69-F. A iniciativa é válida, mas além de complexa porque precisa de autorização judicial e do comitê de credores (que só se instala em gigantes recuperações) exige garantia de bens e direitos. A grande maioria das empresas em recuperação judicial e seus empresários já não possuem bens e direitos para negociar ou estão todos comprometidos.
Parece que o legislador pensou apenas nas grandes recuperações judiciais e não nas empresas de médio e pequeno porte que correspondem a 80% do total de empresas no Brasil. A estas que geram mais emprego e mantém a economia de pequenas cidades nada foi pensado e amargam recuperações judiciais (que tem um custo caro) sem nenhuma condição de conseguir crédito justo no mercado. São obrigadas a ir para o mercado de crédito de segunda categoria (que aceita o risco mas com juros exorbitantes) o que ao invés de favorecer a recuperação, às vezes é o último passo para falência.
Em tempos de crise, muitas medidas poderiam e podem ser tomada visando a preservação da empresa, como por exemplo formas de contratações diferenciadas para empresas em recuperação judicial (diminuindo os encargos) até que a mesma saia da recuperação, parcelamento de débitos fiscais mais reais, linhas de crédito diferenciadas observando a proposta aqui apresentada de uma nova interpretação do artigo 8º da resolução 2.682/99 da CMN.
Vale dizer que tanto os EUA, como a Europa e a própria China injetaram dinheiro na economia diretamente nas empresas de modo que mantivessem suas atividades nesta pandemia. É possível alguém dizer que estas economias são mais ricas que a nossa, porém elas não têm a capacidade de economizar que o Brasil tem já que seu PIB (que é maior do que a Rússia por exemplo) é consumido acima da média de países como EUA, Alemanha e Japão pelo custo da máquina pública. Tais países ainda por cima tem PIB maior que o do Brasil.
Conclui-se, portanto, que é possível sim uma alteração legislativa a fim de viabilizar a recuperação judicial das empresas em dificuldade e a consequente recuperação econômica (já que hoje no Brasil qual empresa não tem dificuldade), basta um esforço do governo e do legislador neste sentido.
Autor: João Roberto Ferreira Franco
Advogado, graduado em Direito pela Universidade do Vale do Paraíba (2008). Pós-graduado em Direito Processual Civil pela Universidade Presbiteriana Mackenzie (2010). Pós-graduado em Direito Empresarial pela PUC – SP (2012). Doutorando em Direito Político e Econômico na Universidade Presbiteriana Mackenzie. Possui experiência em Gestão Jurídica de Escritórios de Advocacia. Sócio-Diretor do escritório Lodovico Advogados com inscrição perante a Ordem dos Advogados do Brasil, seção São Paulo, sob número 292.237. Professor de Direito no Grupo Kroton. Mestre em direito Empresarial pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. LLM em Direito Americano pela Washington University in St. Louis. Foi coordenador de Direito Empresarial da Comissão do Jovem Advogado de SP. É Defensor e Instrutor nomeado do Tribunal de Ética e Disciplina também da OAB/SP, membro do IASP, tendo participado de diversos cursos, palestras e seminários na área de Direito, com ênfase em Gestão e Negócios. Autor de artigos veiculados em revistas e periódicos especializados e também palestrante e escritor de livros de ficção.
Comentarios
0 comentarios