Recentemente o Supremo Tribunal Federal colocou fim a celeuma provocada pela Reforma Trabalhista sobre a gratuidade da justiça no processo do trabalho, com declarações de inconstitucionalidades em trechos da CLT.
Por sete votos contra três, decidindo na Ação Direita de Inconstitucionalidade (ADI) 5766, apenas nos casos nos quais o autor da ação não comparece de forma injustificada à audiência serão cobrados custas e honorários de sucumbência.
Há sentido lógico na manutenção de cobrança por ausência injustificada, o que significa que não houve prova das razões pelas quais o trabalhador deixou de comparecer à audiência.
Todavia, talvez se a lei previsse uma multa a ser aplicada com equidade pelo magistrado, não em razão do valor pleiteado na causa, mas da remuneração declarada pelo autor na petição inicial, seria mais harmônico com os princípios gerais do Direito e do Processo do Trabalho.
Nem sempre a ausência de prova implica que o trabalhador agiu com desídia. Todavia, ao movimentar o Poder Judiciário, advogados, testemunhas, é razoável que algum valor seja pago pelo faltoso.
Assim, permaneceu intacto e constitucional o art. 844, § 2º que prevê:
“ Na hipótese de ausência do reclamante, este será condenado ao pagamento das custas calculadas na forma do art. 789 desta Consolidação, ainda que beneficiário da justiça gratuita, salvo se comprovar, no prazo de quinze dias, que a ausência ocorreu por motivo legalmente justificável. ”
Restaram inconstitucionais, ainda, o artigo 790-B da CLT, que afirmava:
“A responsabilidade pelo pagamento dos honorários periciais é da parte sucumbente na pretensão objeto da perícia, ainda que beneficiária da justiça gratuita. ”
E mais, o § 4º:“Somente no caso em que o beneficiário da justiça gratuita não tenha obtido em juízo créditos capazes de suportar a despesa referida no caput, ainda que em outro processo, a União responderá pelo encargo. ”
Como inconstitucional também foi declarado o artigo 791 – A – § 4º:
“ Vencido o beneficiário da justiça gratuita, desde que não tenha obtido em juízo, ainda que em outro processo, créditos capazes de suportar a despesa, as obrigações decorrentes de sua sucumbência ficarão sob condição suspensiva de exigibilidade e somente poderão ser executadas se, nos dois anos subsequentes ao trânsito em julgado da decisão que as certificou, o credor demonstrar que deixou de existir a situação de insuficiência de recursos que justificou a concessão de gratuidade, extinguindo-se, passado esse prazo, tais obrigações do beneficiário.”
Felizmente, restou vencido o voto do Ministro Barroso, uma vez que referida decisão importaria em legislar, quando o dever do magistrado se limita a julgar a causa posta. Causou surpresa que o voto de Barroso tenha sido acompanhado pelos ministros Nunes Marques, Gilmar Mendes e Luiz Fux.
O voto do Ministro Barroso foi pela procedência parcial da ação para limitar a cobrança de honorários, mesmo quando pertinente as verbas remuneratórias, a até 30% do valor excedente ao teto do Regime Geral de Previdência Social.
Ora, não há na lei qualquer menção a este limite, e claramente o STF estaria legislando se o voto do Ministro Barroso prevalecesse.
Na verdade, nunca houve controvérsia séria sobre a necessidade de se tratar com igualdade aqueles que procuram a justiça comum como a justiça especializada laboral.
A Constituição da República no art. 5º – LXXIV determina que “o Estado prestará assistência jurídica integral e gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos. ”
É certo que justiça gratuita não se confunde com assistência jurídica integral, mas claramente a primeira faz parte da segunda, sendo um remédio para garantir o direito de ação aos hipossuficientes.
A distribuição de justiça aos cidadãos é uma política de estado que possibilita, dentre outros objetivos, a pacificação social.
Neste sentido, não se poderia permitir que aqueles que não possuem recursos financeiros se vejam atemorizados com a imposição das mais diversas despesas e riscos judiciais, a não procurarem a Justiça, facilitando com isto, a expansão do exercício arbitrário das próprias razões; em outras palavras, que o cidadão faça justiça com as próprias mãos.
Mas há um limite objetivo na redação dado pela Lei nº13.467/17 que alterou a redação do art. 790, § 3o, da CLT: o requerente da gratuidade ter salário igual ou inferior a 40% (quarenta por cento) do limite máximo dos benefícios do Regime Geral de Previdência Social, o que realmente indica o recebimento de um salário muito baixo, algo em torno de R$2.500,00 mensais atualmente.
Nos demais casos, o autor terá a difícil prova de demonstrar sua condição de pobreza, pois o § 4o, deste mesmo artigo dispõe que o benefício da justiça gratuita será concedido à parte que comprovar insuficiência de recursos para o pagamento das custas do processo.
Temos aí a determinação de realização de uma árdua prova negativa, o que indica que o reclamante terá que elaborar uma planilha documentando entradas e despesas de sua renda familiar; podendo, diante da exposição destes dados sensíveis, requerer que estes sejam mantidos em sigilo, uma vez que o processo é público e a lei está obrigando que sejam lançadas informações que envolvem a privacidade do cidadão, direito fundamental.
Há um choque, neste particular, com regra geral disposta na Lei nº 7.115/1983, em seu artigo 1º: “ A declaração destinada a fazer prova de vida, residência, pobreza, dependência econômica, homonímia ou bons antecedentes, quando firmada pelo próprio interessado ou por procurador bastante, e sob as penas da Lei, presume-se verdadeira. ”
E há também conflito com o artigo 99, § 3o do Código de Processo Civil:
“Presume-se verdadeira a alegação de insuficiência deduzida exclusivamente por pessoa natural”.
Isto imporia, em tese, à parte contrária, o ônus de provar as condições financeiras adequadas do autor, uma vez que a declaração feita por pessoa natural goza de presunção de veracidade e boa-fé.
Ou seja, por isonomia, não haveria que prevalecer o entendimento de que o requerente da justiça gratuita deveria provar que não tem recursos, especialmente porque cabe ao réu demonstrar de forma positiva, seja por requerimentos ao magistrado, seja por documentos, ou outros meios de provas, que o autor possui recursos financeiros.
E mesmo assim, se insuficiente a demonstração efetuada pelo requerente, o magistrado deveria atender ao disposto no artigo 99 do Código de Processo Civil, em face da inexistência de outra norma, que determina o seguinte:
“ O pedido de gratuidade da justiça pode ser formulado na petição inicial, na contestação, na petição para ingresso de terceiro no processo ou em recurso.
2o O juiz somente poderá indeferir o pedido se houver nos autos elementos que evidenciem a falta dos pressupostos legais para a concessão de gratuidade, devendo, antes de indeferir o pedido, determinar à parte a comprovação do preenchimento dos referidos pressupostos”.
Diante destas dificuldades é de cautela que aquele que procura a Justiça do Trabalho o faça com responsabilidade, indicando claramente suas condições financeiras. Com algum cuidado conseguirá demonstrar.
Se tais medidas inconstitucionais foram impostas pela reforma, é porque houve abusos, havendo casos até de jogadores de futebol e artistas com altos salários, que pleitearam no passado a justiça gratuita com mera declaração, o que demonstra falta de boa-fé e prejudica os trabalhadores menos favorecidos.
Desta forma, tanto as partes, como magistrados, devem agir com prudência, sem atropelos, para definir os casos de aplicação do benefício.
Sempre é bom recordar que estamos diante de um quadro terrível de desemprego, com inadimplência de verbas rescisórias nas dispensas de trabalhadores, sendo o pagamento destas verbas o principal pedido efetuado na Justiça do Trabalho.
Portanto, a decisão do STF está em harmonia com os compromissos internacionais de acesso à justiça, firmados pelo Brasil, a exemplo do Pacto de San José da Costa Rica.
Em complemento, há a recente Declaração conjunta de janeiro de 2021, firmada em Washington , por meio da “Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) e o Relator Especial sobre Independência de Magistrados e Advogados das Nações Unidas, Diego García-Sayán,”, com um “chamado aos Estados da região para que, como parte das medidas e iniciativas adotadas para conter a pandemia de COVID-19, seja garantido o mais amplo acesso à justiça como meio fundamental para proteger e promover os direitos humanos e as liberdades fundamentais.”
Cássio Faeddo. Advogado. Mestre em Direito. MBA em Relações Internacionais pela FGV/SP.
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