O julgamento do Rol da ANS sobre ser taxativo ou exemplificativo tem gerado inúmeros debates jurídicos, sociais e econômicos em razão de ser um tema que envolve aproximadamente 48 milhões de beneficiários de planos privados de assistência à saúde. A audiência teve início em 16 de setembro do ano passado na Segunda Seção do Superior Tribunal de Justiça, com a leitura do voto de relatoria do Ministro Luis Felipe Salomão no sentido da taxatividade do rol, porém com a possibilidade de exceções. Após a leitura do voto pelo Ministro Salomão, o julgamento foi interrompido pelo pedido de vista da Ministra Nancy Andrighi, sendo retomada a sessão de julgamento em 23 de fevereiro deste ano, com a leitura do voto-vista da Ministra Nancy Andrighi que considerou o rol da ANS como de natureza exemplificativa. Após a conclusão da leitura do voto-vista, o Ministro Ricardo Villas Bôas Cueva também fez pedido de vista, suspendendo novamente o julgamento. Dessa forma, em razão da nova suspensão do julgamento, agora contando com um voto que considera o rol taxativo (Ministro Salomão) e outro voto que possui entendimento no sentido de ter o rol de natureza exemplificativa (Ministra Nancy), voltam à tona os debates sobre uma ou outra posição. Diante disso, o que pretendemos colocar aqui é uma análise do ponto de vista comparativo entre os pilares da assistência à saúde pelo Poder Público e pela iniciativa privada, a denominada Saúde Suplementar.
O direito à saúde é um direito social básico assegurado pela Constituição Federal Brasileira e se encontra insculpido logo no seu art. 6º, em que dispõe: “São direitos sociais a educação, a saúde […] na forma desta Constituição”, passando então a ser um direito fundamental, constitucionalmente protegido. Ademais, tamanha sua importância, encontra-se também assegurado em título específico na Constituição da República com a denominação “Da Ordem Social”, que trata especificamente dos principais aspectos relacionados à saúde. Assim, ao Poder Público incumbe a implementação das políticas econômicas e sociais de forma que haja garantia de acesso universal e igualitário a todos os cidadãos, ou seja, os referidos dispositivos da Constituição dizem respeito especificamente à organização do Sistema de Saúde no país.
Ainda, muito embora seja obrigação do Estado fornecer assistência à saúde a todos os cidadãos, ao mesmo tempo houve, de certa forma, um reconhecimento (previsibilidade futurística) pelo constituinte de que o Estado, por si só, não supriria toda a demanda de atendimento à saúde. Por isso, para suprimir deficiências estruturais nessa área do serviço público é que o art. 199 da Constituição Federal dispôs que: “A assistência à saúde é livre à iniciativa privada”, trazendo em quatro parágrafos os seus princípios basilares, cabendo a elas, portanto, participar de forma complementar ao Sistema Único de Saúde (SUS).
Nesse contexto, temos dentro do sistema de saúde nacional as duas formas de prestação de serviços à saúde: a rede pública e a rede privada. As duas têm a mesma finalidade, porém, ambas as formas encontram guarida em diferentes princípios e não se confundem. No primeiro ponto de distinção, a saúde pública tem a necessidade imperativa de observar o princípio da universalidade, como direito de acesso ao serviço de saúde em todos os níveis de assistência, e se consubstancia no direito de qualquer indivíduo, independentemente de suas condições pessoais, em ter acesso à prestação de serviço de assistência à saúde (sentido amplo). Em contrapartida, esse princípio não se aplica à Saúde Suplementar, porque no serviço de saúde prestado pelo Poder Público não pode haver qualquer tipo de segregação no atendimento, ou seja, deve atender a todos. Porém, nos planos particulares, há somente atendimento aos beneficiários que contratam um plano ou seguro, haja vista que a existência do sistema privado de saúde depende do fator econômico-financeiro para sua manutenção, pois, em consonância com a Constituição Federal de 1988, é vedada a destinação de recursos públicos para instituições privadas, salvo se não tiver fins lucrativos (art. 199, § 2º), sendo a mutualidade, princípio que substitui a destinação de recursos públicos.
A segunda distinção diz respeito ao princípio da integralidade, também de aplicabilidade direta ao setor público de saúde, entendido como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema. Importante mencionar que as questões públicas orçamentárias e de discricionariedade administrativa não podem ser tratadas como excusas para justificar a ausência de atendimento integral. Nesse ponto, é importante destacar a distinção que diz respeito aos sujeitos: enquanto na assistência à saúde prestada pelo Estado há uma relação indivíduo-Estado, nos planos privados há uma relação entre cliente-empresa, sendo de um lado o indivíduo particular e do outro as pessoas jurídicas de direito privado que operam planos ou seguros privados de assistência à saúde. Estas, por sua vez, têm a necessidade de ter claramente definidas as coberturas que são obrigatórias, a fim de avaliar o risco e determinar, por consequência, o preço que os beneficiários irão pagar pelo plano de saúde. Ainda no aspecto da não aplicação do princípio da integralidade ao setor privado, importante observar que confere à ANS – Agência Nacional de Saúde Suplementar a prerrogativa de estabelecer as coberturas obrigatórias a serem ofertadas pelos planos de saúde. Ademais, gratuidade e igualdade são princípios mandatórios para o setor público de saúde, dos quais decorrem o acesso igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação da saúde dos indivíduos (art. 196, complementado com as disposições da Lei Orgânica da Saúde nº 8.089 de 1990, art. 7º, inc. IV) e a inexistência de tratamento diferenciado ou privilégios de qualquer espécie, e sem custo direto ao cidadão pelo atendimento.
Por outro lado, para a Saúde Suplementar, não há que se falar da aplicabilidade do princípio da gratuidade, pois verifica-se agora que a lógica contratual leva a um dos requisitos do contrato empresarial, que é a onerosidade, cuja função é a de manter uma estrutura de financiamento para a manutenção do equilíbrio econômico-financeiro das operadoras de planos de saúde. A onerosidade é requisito comum aos contratos privados cotidianos, sendo que às operadoras de assistência à saúde aplicam-se as mesmas regras dos contratos de seguros, porém, há um elemento importante distinto dos demais contratos: a conexão direta ao mutualismo que, por sua vez, está intimamente ligado ao equilíbrio econômico-financeiro. O mutualismo refere-se à solidariedade financeira entre os indivíduos-beneficiários de um determinado plano de saúde privado, a fim de que a operadora administre os recursos recebidos e faça o direcionamento para cada um dos grupos de indivíduos para a cobertura das enfermidades por eles contratadas. Em outras palavras: “É o mutualismo que permite que muitas pessoas contribuem com valores em dinheiro para a formação de um fundo, de onde sairão os recursos para pagar todos os custos necessários para os diversos procedimentos, dentro do previsto no contrato e na legislação, para aquelas pessoas que eventualmente necessitem de assistência médica. Sem o funcionamento do sistema mutual, cada pessoa deveria pagar sozinha pelos gastos que tivesse em saúde, o que quase nunca é possível devido ao nível de renda da maioria da população.” (Contratos de Plano de Saúde, FenaSaúde, p.36)
Muito embora o tema seja “complexo” exclusivamente sob o prisma social, o objetivo deste texto é trazer à discussão, a imprescindível necessidade de diferenciar o atual funcionamento do sistema de saúde no Brasil. Mesmo que ainda haja certa discussão entre o rol ser considerado exemplificativo ou taxativo, há muitas outras questões que devem ser consideradas nesta seara. Isto porque, os sistemas público e privado de saúde possuem objetivos iguais, mas, possuem estruturas de funcionamento e financiamento muito diferentes, como se pode verificar na análise de alguns princípios que se aplicam de forma distinta na relação indivíduo-Estado e entre particulares.
Marco Aurélio F. Yamada – Gerente Jurídico Cível no Mandaliti
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