Há sobreposição entre os juízos estatal e arbitral, ou algum tipo de competição entre eles? Ou, ao contrário, o juízo arbitral e o juízo estatal devem cooperar entre si?
Essas indagações se apresentam, por exemplo, quando se está diante da necessidade de se praticarem atos executivos ou atos urgentes quanto a controvérsia que deva submeter-se, por convenção das partes, à decisão arbitral.
Analisaremos, aqui, alguns dos mais importantes princípios firmados pela jurisprudência do Superior Tribunal do Justiça, examinando-os à luz da disciplina normativa brasileira e, também, de informações colhidas no direito comparado.
A decisão do juízo arbitral é título executivo judicial (Lei 9.307/1996, artigo 31; CPC de 2015, artigo 515, caput, VII). No entanto, o árbitro não tem poder de executar suas próprias decisões. A execução da decisão arbitral dependerá do Poder Judiciário estatal, a quem a lei reservou a tutela coativa dos direitos.
Caso a obrigação esteja contida em um título executivo extrajudicial, o credor tem direito de pedir a tutela executiva diretamente à jurisdição estatal. Exigir-se que aquele que já ostenta um título executivo (embora extrajudicial) requeira, antes, a prolação de decisão condenatória arbitral, ensejaria grave violação à garantia prevista no artigo 5º, caput, XXXV da Constituição Federal. O credor a quem a lei confere título executivo extrajudicial já tem direito à tutela jurisdicional executiva estatal, não dependendo, para tanto, de decisão arbitral. Por tal razão, ainda que existente convenção arbitral no título executivo extrajudicial, tem o credor direito de ajuizar execução judicial perante o juízo estatal
Isso não esvazia a jurisdição arbitral. Convencionada a arbitragem, deve-se respeitar a autonomia da vontade das partes. Estas conservam o direito de exigir que as questões atinentes ao débito sejam decididas pelo árbitro. Assim, ajuizada execução judicial de título executivo extrajudicial que preveja cláusula compromissória, as questões que digam respeito à dívida deverão ser decididas pelo árbitro, e não pelo juiz estatal . Ao juízo estatal tocará decidir apenas sobre a existência dos requisitos do processo executivo e sobre a validade e a adequação dos atos executivos.
Também aqui podem surgir outras dúvidas: Por exemplo, como se deve proceder se uma das partes, no curso da execução, suscitar questão relacionada ao débito, tema que deve ser objeto de decisão do juízo arbitral? Presente tal circunstância, cumprirá ao juízo estatal suspender a execução, aguardando a decisão do juízo arbitral sobre o tema.
Nesses e em outros casos, a comunicação entre os juízos estatal e arbitral se dá através da carta arbitral (CPC, artigos 69, § 1º, 237, IV, 260, § 3º; Lei 9.307/1996, artigo 22-C, inserido pela Lei 13.129/2015). Os juízos estatal e arbitral, nesse cenário, devem cooperar entre si— harmonicamente, como se afirma na jurisprudência.
Note-se que, de acordo com o princípio “kompetenz-kompetenz”, reconhece-se que o juízo arbitral é quem deliberará, como regra, sobre o seu âmbito de atuação. Esse princípio, originariamente construído pela jurisprudência e pela doutrina alemãs à luz da legislação daquele país e amplamente admitido pela jurisprudência brasileira com base no artigo 8º, parágrafo único, da Lei 9.307.1996, foi textualmente consagrado no CPC de 2015 (artigo 485, caput, VII, 2ª parte)
Pode-se, no entanto, estar diante de vício extremamente grave, que conduza à inexistência da convenção arbitral. Em casos assim, em que manifesta essa ausência, deve-se também aplicar o princípio “kompetenz-kompetenz”? É imprescindível que a solução do dilema seja submetida ao árbitro, também nesse caso?
É verdade que o artigo 8º, parágrafo único, da Lei 9.307/1996 e o artigo 485, caput, VII, 2ª parte do CPC de 2015 reconhecem que o juízo arbitral deve decidir sobre o teor da convenção arbitral e sobre a sua competência, mas é inegável, também, que o juízo estatal pode ser chamado a decidir sobre o conteúdo da convenção, mesmo antes da instituição da arbitragem (cf. artigo 7º, § 3º, da Lei 9.307/1996). Em outro momento, e findo o procedimento arbitral, o juízo estatal poderá decretar a nulidade da sentença arbitral proferida (artigo 33 da Lei 9.307/1996), por exemplo, em caso de nulidade da convenção de arbitragem ou de decisão arbitral proferida fora dos limites da convenção de arbitragem (artigo 32, I e IV da Lei 9.307/1996).
Nota-se, portanto, que o princípio “kompetenz-kompetenz”, ainda que adotado com primazia, não se impõe em termos absolutos. Afirma-se, na cultura jurídica alemã, que a decisão do juízo arbitral a respeito não vincula, necessariamente, o juízo estatal, que poderá deliberar posteriormente a respeito, aí sim em termos definitivos. Adaptando essa orientação ao direito brasileiro, decidiu o Superior Tribunal de Justiça que não se pode obstar o juízo estatal de pronunciar a manifesta inexistência ou nulidade de convenção arbitral, “nos casos em que prima facie é identificado um compromisso arbitral ‘patológico’, i.e., claramente ilegal”, mesmo antes de instaurado o procedimento arbitral.
Quando houver necessidade de se requerer alguma medida urgente, a Lei 9.307/1996, em seu artigo 22-A (inserido pela Lei 13.129/2015), dispõe que, antes de instituída a arbitragem, as partes podem pleitear tutela cautelar perante o Poder Judiciário. No caso, a lei positivou solução que, há muito, vinha sendo preconizada pela jurisprudência. Não poderia ser diferente. Afinal, se incorreria em grave inconstitucionalidade caso se impedisse o acesso ao Poder Judiciário estatal para impedir a concessão de tutela de urgência (cf. artigo 5º, inciso XXXV, da Constituição Federal).
Se requerida tutela cautelar antecedente perante a justiça estatal, como se preservar a vontade das partes no sentido da instituição do juízo arbitral? No caso, a instituição da arbitragem deverá ser requerida em trinta dias, após a efetivação da pedida cautelar (cf. parágrafo único do artigo 22-A da Lei 9.307/1996, na redação da Lei 13.129/2015), e, instituída a arbitragem, o órgão arbitral respectivo decidirá se mantém, modifica ou revoga a medida cautelar concedida pelo juiz estatal (cf. artigo 22-B da Lei 9.307/1996, inserido pela Lei 13.129/2015)
Nota-se, também aqui, a cooperação que deve haver entre os órgãos da jurisdição estatal e da arbitragem, como se atuassem em uma corrida de revezamento em que os integrantes de uma mesma equipe se substituem alternadamente até se alcançar o objetivo final.
José Miguel Garcia Medina é doutor e mestre em Direito, professor titular na Universidade Paranaense, professor associado na UEM, advogado, árbitro e sócio do escritório Medina Guimarães Advogados. Integrou a Comissão de Juristas nomeada pelo Senado Federal para elaboração do anteprojeto que deu origem ao Código de Processo Civil de 2015.
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